Eis que o Brasil despertou neste 23 de dezembro como o País dos entendidos e apreciadores de handebol. Pululam teses nas inefáveis redes sociais sobre o esporte, a falta de apoio, a superação, a garra e o maquiavelismo do mundo dos negócios esportivos.
Um dos muitos problemas desta Terra de Santa Cruz é a capacidade infinita de proliferação de teses. Afinal, somos todos especialistas em tudo, doutos em qualquer assunto que se apresente. Sem contar a vocação ancestral para as teorias conspiratórias.
A conquista das mulheres no handebol é daquelas que merece, sim, ser classificada como histórica nessa era em que o adjetivo é banalizado a cada final de semana de evento esportivo, com base em estatísticas quase sempre inúteis e modorrentas.
Não havia até o 22 de dezembro de 2013, na trajetória dos esportes coletivos no Brasil, caso em que uma equipe tivesse chegado pela primeira vez entre as quatro melhores e cravado a medalha de ouro. Todos que foram campeões mundiais, futebol, basquete e vôlei haviam, antes, alcançado uma semifinal, uma medalha de bronze, uma prata. O handebol feminino fez barba, cabelo e bigode nas estatísticas que realmente importam. Isso é histórico.
Entre os milhares de manifestações infestadas de termos ufanistas de ocasião e a infalível e abominável musiquinha do "sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor" ficam poucas análises realmente realistas.
Claro que é preciso exaltar e comemorar o feito, mas com base no que ele representa e em tudo que aconteceu para que o título mundial fosse conquistado por esse grupo especial de atletas.
Há muito mais competência e trabalho duro do que heroísmo. Houve um projeto de trabalho que visava a evolução das seleções brasileiras de handebol, visando uma mudança de quadro que progressivamente levou dos Mundiais B até uma conquista.
Talento sempre houve, desde o tempo de Santo Baldacin. Bons jogadores sempre houve. Mas não basta talento para ser vencedor em alto nível. É preciso treinar em alto nível, jogar em alto nível, perder em alto nível para poder ganhar lá na frente. Isso tudo aconteceu, basta ler e estudar, mesmo sem acompanhar o dia-a-dia do esporte. Um grupo seleto de atletas talentosas foi destacado para jogar por uma equipe austríaca, numa liga de nível elevado, com um treinador experiente e capacitado, importado de uma nação com tradição e história no esporte. Os resultados vieram em uma década de trabalho sério, capacitado e muito suor.
Não há mistério, não existe milagre.
Acontecem fenômenos esporádicos, como Maria Esther Bueno e Guga, desperdiçados em meio à incompetência e falta de visão estratégica que contaminam um esporte como o tênis, apenas para citá-lo como exemplo.
Um título mundial não significa que em 2014 haverá brasileiros jogando handebol em cada esquina e ginásios lotados para ver os jogos por aqui. Longe disso. Uma seleção forte não é sinônimo de esporte e ligas igualmente fortes.
O vôlei dos Estados Unidos é um exemplo disso. Tem seleções fortíssimas, mas na pátria do esporte como negócio nem sequer possui uma liga profissional. O que não impede o trabalho de excelência nas seleções.
O que mais me incomoda sempre que acontece uma bela e justa conquista de esporte dito amador no Brasil é a comparação fora de hora e de contexto com o futebol. A velha história de que se não gastassem tanto com o futebol tudo seria diferente com outros esportes.
Tudo conto da carochinha, choro de patota e reclamação de amiguinho.
Basta ver os patrocinadores das seleções de basquete, vôlei e handebol para saber que existe dinheiro público e boa quantia investidos nesses projetos e em outros, como natação, atletismo etc. O esporte olímpico de alto rendimento no Brasil é praticamente estatal em termos de investimentos.
Sucesso esportivo não é sinônimo de popularidade. O futebol é o rei dos esportes na maioria do planeta, não apenas no Brasil. Gera e movimenta as quantias que o envolvem porque repercute igualmente em termos de popularidade. Isso é um fato incontestável. Assim como dá mais audiência e rende mais espaço de cobertura em jornais e internet.
Escrevo com algum conhecimento de causa porque já cobri de tudo, de boliche a Copa do Mundo, tive uma experiência saborosa em minha vida como atleta e, posteriormente, como jornalista, em Olimpíada, Pan, Mundiais de vôlei, basquete, judô. Muitas vezes a qualquer comentário eu ouvia dos próprios colegas, poucos, é verdade, uma patotinha: "xi, olha o comentário do pessoal do futebol". Ou então: "aqui não é futebol, viu".
Pior que isso é o ainda presente comportamento de alguns que à primeira derrota entoam o coro do "faltou sorte, deu azar, falta apoio, vocês são heróis, são guerreiros, não têm apoio".
Prefiro ficar com as afirmações que ouvi recentemente de um dos maiores atletas brasileiros em todos os tempos, Arthur Zanetti. Ele não usa o chororô como discurso oficial, lembra que escolheu ser atleta porque gosta e faz isso porque é o caminho que deu a sua vida. Postura que talvez ajude a explicar seu sucesso, seu nível de concentração e envolvimento.
Muitos atletas chamados amadores no Brasil enriqueceram com o esporte e graças ao seu esforço e talento. Há atletas muitíssimo bem remunerados. É preciso abandonar o discurso da falta de incentivo e apoio no que se refere aos profissionais do esporte de alto rendimento.
O que falta é projeto de base, de educação, é levar e inserir o esporte à realidade escolar e na formação do caráter do jovem.
Nunca houve tanto esporte na TV brasileira como se mostra hoje. Tem de tudo. Handebol, vôlei, rúgbi, curling, atletismo, basquete, natação, esportes de inverno, maratona, esportes radicais. Há espaço, canais e modelos de negócio distintos e para todos os gostos. Ninguém faz nada de graça ou abre sinal por caridade. Como dizem os businessmen, não tem almoço grátis.
Talento sempre houve e sempre haverá. O que falta é exaltar a competência, o trabalho duro e os projetos de longo prazo e parar de chorar sobre o dinheiro (muitas vezes público) derramado, o que é especialidade de alguns esportes. Que podem reclamar de falta de sorte e apoio, por exemplo, basquete e tênis, que tiveram todas as oportunidades e as jogaram fora por picuinhas, politicagem e amadorismo?
O handebol mostrou que é possível atingir a excelência mesmo sem popularidade, e que as duas coisas não andam juntas obrigatoriamente.
Que as pessoas que fazem o handebol no Brasil aproveitam esta oportunidade para consolidar o projeto, seja com a manutenção de seleções fortes mesmo sem popularização e liga, ou com um bom campeonato nacional e massificação. Que não aconteça com o handebol o que houve com o basquete feminino, campeão mundial em 1994 e abençoado com Paula e Hortência e hoje uma triste lembrança desses tempos.
Atleta não é soldado. Ninguém que vista a camisa do Brasil numa competição internacional atendeu um chamado às armas, nem é um brasileiro mais brasileiro do que outro brasileiro por causa disso. O governo que twitta loas às conquistas é o mesmo que há bem pouco tempo queria desregulamentar a profissão de professor de educação física.
Entender essa realidade é o primeiro passo para profissionalizar e potencializar o esporte competitivo no Brasil, sempre tendo como base a escola, a educação. Ninguém é atleta por obrigação, geralmente é por escolha e prazer. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.