segunda-feira, dezembro 23, 2013

Menos heroísmo e mais competência


Eis que o Brasil despertou neste 23 de dezembro como o País dos entendidos e apreciadores de handebol. Pululam teses nas inefáveis redes sociais sobre o esporte, a falta de apoio, a superação, a garra e o maquiavelismo do mundo dos negócios esportivos.

Um dos muitos problemas desta Terra de Santa Cruz é a capacidade infinita de proliferação de teses. Afinal, somos todos especialistas em tudo, doutos em qualquer assunto que se apresente. Sem contar a vocação ancestral para as teorias conspiratórias.

A conquista das mulheres no handebol é daquelas que merece, sim, ser classificada como histórica nessa era em que o adjetivo é banalizado a cada final de semana de evento esportivo, com base em estatísticas quase sempre inúteis e modorrentas.

Não havia até o 22 de dezembro de 2013, na trajetória dos esportes coletivos no Brasil, caso em que uma equipe tivesse chegado pela primeira vez entre as quatro melhores e cravado a medalha de ouro. Todos que foram campeões mundiais, futebol, basquete e vôlei haviam, antes, alcançado uma semifinal, uma medalha de bronze, uma prata. O handebol feminino fez barba, cabelo e bigode nas estatísticas que realmente importam. Isso é histórico.

Entre os milhares de manifestações infestadas de termos ufanistas de ocasião e a infalível e abominável musiquinha do "sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor" ficam poucas análises realmente realistas.

Claro que é preciso exaltar e comemorar o feito, mas com base no que ele representa e em tudo que aconteceu para que o título mundial fosse conquistado por esse grupo especial de atletas.

Há muito mais competência e trabalho duro do que heroísmo. Houve um projeto de trabalho que visava a evolução das seleções brasileiras de handebol, visando uma mudança de quadro que progressivamente levou dos Mundiais B até uma conquista.

Talento sempre houve, desde o tempo de Santo Baldacin. Bons jogadores sempre houve. Mas não basta talento para ser vencedor em alto nível. É preciso treinar em alto nível, jogar em alto nível, perder em alto nível para poder ganhar lá na frente. Isso tudo aconteceu, basta ler e estudar, mesmo sem acompanhar o dia-a-dia do esporte. Um grupo seleto de atletas talentosas foi destacado para jogar por uma equipe austríaca, numa liga de nível elevado, com um treinador experiente e capacitado, importado de uma nação com tradição e história no esporte. Os resultados vieram em uma década de trabalho sério, capacitado e muito suor.

Não há mistério, não existe milagre.

Acontecem fenômenos esporádicos, como Maria Esther Bueno e Guga, desperdiçados em meio à incompetência e falta de visão estratégica que contaminam um esporte como o tênis, apenas para citá-lo como exemplo.

Um título mundial não significa que em 2014 haverá brasileiros jogando handebol em cada esquina e ginásios lotados para ver os jogos por aqui. Longe disso. Uma seleção forte não é sinônimo de esporte e ligas igualmente fortes.

O vôlei dos Estados Unidos é um exemplo disso. Tem seleções fortíssimas, mas na pátria do esporte como negócio nem sequer possui uma liga profissional. O que não impede o trabalho de excelência nas seleções.

O que mais me incomoda sempre que acontece uma bela e justa conquista de esporte dito amador no Brasil é a comparação fora de hora e de contexto com o futebol. A velha história de que se não gastassem tanto com o futebol tudo seria diferente com outros esportes.

Tudo conto da carochinha, choro de patota e reclamação de amiguinho.

Basta ver os patrocinadores das seleções de basquete, vôlei e handebol para saber que existe dinheiro público e boa quantia investidos nesses projetos e em outros, como natação, atletismo etc. O esporte olímpico de alto rendimento no Brasil é praticamente estatal em termos de investimentos.

Sucesso esportivo não é sinônimo de popularidade. O futebol é o rei dos esportes na maioria do planeta, não apenas no Brasil. Gera e movimenta as quantias que o envolvem porque repercute igualmente em termos de popularidade. Isso é um fato incontestável. Assim  como dá mais audiência e rende mais espaço de cobertura em jornais e internet.

Escrevo com algum conhecimento de causa porque já cobri de tudo, de boliche a Copa do Mundo, tive uma experiência saborosa em minha vida como atleta e, posteriormente, como jornalista, em Olimpíada, Pan, Mundiais de vôlei, basquete, judô. Muitas vezes a qualquer comentário eu ouvia dos próprios colegas, poucos, é verdade, uma patotinha: "xi, olha o comentário do pessoal do futebol". Ou então: "aqui não é futebol, viu".

Pior que isso é o ainda presente comportamento de alguns que à primeira derrota entoam o coro do "faltou sorte, deu azar, falta apoio, vocês são heróis, são guerreiros, não têm apoio".

Prefiro ficar com as afirmações que ouvi recentemente de um dos maiores atletas brasileiros em todos os tempos, Arthur Zanetti. Ele não usa o chororô como discurso oficial, lembra que escolheu ser atleta porque gosta e faz isso porque é o caminho que deu a sua vida. Postura que talvez ajude a explicar seu sucesso, seu nível de concentração e envolvimento.

Muitos atletas chamados amadores no Brasil enriqueceram com o esporte e graças ao seu esforço e talento. Há atletas muitíssimo bem remunerados. É preciso abandonar o discurso da falta de incentivo e apoio no que se refere aos profissionais do esporte de alto rendimento.

O que falta é projeto de base, de educação, é levar e inserir o esporte à realidade escolar e na formação do caráter do jovem.

Nunca houve tanto esporte na TV brasileira como se mostra hoje. Tem de tudo. Handebol, vôlei, rúgbi, curling, atletismo, basquete, natação, esportes de inverno, maratona, esportes radicais. Há espaço, canais e modelos de negócio distintos e para todos os gostos. Ninguém faz nada de graça ou abre sinal por caridade. Como dizem os businessmen, não tem almoço grátis.

Talento sempre houve e sempre haverá. O que falta é exaltar a competência, o trabalho duro e os projetos de longo prazo e parar de chorar sobre o dinheiro (muitas vezes público) derramado, o que é especialidade de alguns esportes. Que podem reclamar de falta de sorte e apoio, por exemplo, basquete e tênis, que tiveram todas as oportunidades e as jogaram fora por picuinhas, politicagem e amadorismo?

O handebol mostrou que é possível atingir a excelência mesmo sem popularidade, e que as duas coisas não andam juntas obrigatoriamente.

Que as pessoas que fazem o handebol no Brasil aproveitam esta oportunidade para consolidar o projeto, seja com a manutenção de seleções fortes mesmo sem popularização e liga, ou com um bom campeonato nacional e massificação. Que não aconteça com o handebol o que houve com o basquete feminino, campeão mundial em 1994 e abençoado com Paula e Hortência e hoje uma triste lembrança desses tempos.

Atleta não é soldado. Ninguém que vista a camisa do Brasil numa competição internacional atendeu um chamado às armas, nem é um brasileiro mais brasileiro do que outro brasileiro por causa disso. O governo que twitta loas às conquistas é o mesmo que há bem pouco tempo queria desregulamentar a profissão de professor de educação física.

Entender essa realidade é o primeiro passo para profissionalizar e potencializar o esporte competitivo no Brasil, sempre tendo como base a escola, a educação. Ninguém é atleta por obrigação, geralmente é por escolha e prazer. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.

quinta-feira, dezembro 19, 2013

Ruim da cabeça ou doente do pé?


Antes de mais nada é preciso afirmar que a derrota do Galo para o Raja Casablanca é, sim, uma clamorosa zebra. Como tinha sido o fracasso do Inter diante do Mazembe, em 2010. Zebras estão aí para mostrar porque o futebol é o esporte rei do planeta.

Assim como zebras também são vexames. Também é preciso ter a honestidade de afirmar que, com o perdão da redundância, não é vexame dar alguns vexames na vida. Faz parte.

Em 2010 eu estava em Abu Dhabi com os companheiros Milton Leite, Lédio Carmona e Eduarda Strebb e vimos, atônitos, o dia de glória do Mazembe. Ontem acompanhei pela TV, revi pela Internet e não tenho dúvidas em cravar que foi zebra e também foi vexame, sim.

Porque pela estrutura, pelo tamanho dos times, pelo que se espera e se envolve, uma equipe brasileira ser eliminada por qualquer uma do Congo ou do Marrocos é um acidente, mas daqueles que sempre pode ser evitado. Tem imprudência, tem erro no caminho.

O que me pergunto faz tempos, desde que cobri, in loco, meu primeiro Mundial de Clubes, em 2006, é se nosso futebol chega a esta competição ruim da cabeça ou doente do pé? Porque não me lembro de, neste formato, a partir de 2005, uma equipe do Brasil ter vencido a semifinal com facilidade, com sobras. Além das duas fatídicas derrotas. Mesmo os que foram campeões tiveram suas doses de sofrimento, em algumas situações até mesmo andaram à beira da eliminação.

Sempre coloco isso em minhas opiniões, quando perguntado sobre o Mundial de Clubes: a semifinal é traiçoeira. É o jogo que dura seis meses e já começa vencido pelo time brasileiro. Todo mundo projeta a decisão contra o gigante europeu de plantão. Tentem lembrar agora, sem pesquisar no Google, os nomes dos times que foram derrotados nas semifinais pelos brasileiros que foram ao Mundial de Clubes desde 2005. Difícil, né? Mas do Mazembe e do Raja ninguém esquecerá.

É a história do ruim da cabeça. Eu acho que os times brasileiros lidam mal com essa questão psicológica do adversário mais fraco e da final anunciada com antecedência de seis meses. Mas não é a única tese para a explicação. A principal delas é a bola jogada. E o Atlético jogou mal, muito mal. Técnica e estrategicamente. Permitiu que um adversário inferior em qualidade utilizasse do contra-ataque como arma frequente e perigosa. Isso é um erro tático. Acontece porque um time sai do seu modelo habitual de jogo, se atira sobre o adversário, com todo mundo querendo resolver individualmente um problema que é coletivo. Não foi uma, não foram duas. Foram várias vezes em que o Raja contra-atacou perigosamente.

Individualmente todos os atletas do time mineiro estiveram opacos, abaixo de seu rendimento. O pênalti do segundo gol foi Mandrake, tudo bem, mas não serve como justificativa. O Galo esteve doente do pé em Marrakesh.

Seria coincidência o fato de os europeus jamais terem sucumbido à maldição da semifinal no Mundial de Clubes? Será que o fato de nós, brasileiros, valorizarmos muito mais essa competição do que os europeus não nos leva pesados demais para os duelos? Porque os times europeus chegam mais leves. Não quer dizer que deixem de levar a sério, mas lidam melhor com essa situação do favoritismo. Até porque, sem dúvida, taticamente seus atletas são mais bem preparados. Mesmo quando perdem para equipes sul-americanas na final, não é o fim do mundo, o portal do inferno. A vida segue.

Seguir com a vida é a missão do Galo. Mostrar que a Libertadores não foi um ponto fora da curva, que o projeto atual reposicionou o time, que entrará sempre para disputar títulos, não apenas participar.

terça-feira, dezembro 17, 2013

Futebol brasileiro atira no próprio pé


Ainda senhor absoluto da paixão popular esportiva o futebol posicionou-se em uma perigosa encruzilhada no Brasil.

Nunca antes na história deste País (sem nenhuma picardia política) se investiu tanto dinheiro em futebol como nos últimos 15 anos. As verbas advindas de TV, patrocínios de camisa e material esportivo deixaram o patamar da caridade para chegar a níveis excelentes. O valor do ingresso foi catapultado a um estrato que só agora começa a ganhar, sabe-se lá a que preço, equivalência no conforto de alguns estádios nababescos.

Tudo parecia caminhar para uma rota evolutiva consistente.

 Só faltou combinar com uma categoria fundamental: o dirigente. Aquele mesmo que odeia ser chamado de cartola mas raramente consegue se comportar como um manager, um gerente, um diretor remunerado.

Refém das décadas de amadorismo e coronelismo mascaradas pelas conquistas e pelo que parecia ser uma produção infindável de grandes jogadores, o futebol no Brasil começa agora a pagar o preço do amadorismo quase absoluto de seus dirigentes.

Embora nunca tenha entrado tanto dinheiro no mercado, os clubes acumulam dívidas que se afastam cada vez mais da casa das centenas de milhões para flertar com o bilhão.

O mercado de compra e venda de jogadores, que costumava ferver na segunda quinzena de dezembro, chafurda na penúria econômica da maioria dos clubes.

Nos últimos dez anos a praga cafona dos Novos Ricos se abateu sobre o futebol cinco vezes campeão do mundo. Jogadores medíocres cobram salários de três dígitos. Treinadores entendem que precisam receber soldos que ultrapassam a casa de meio milhão mensal e carregam a tiracolo comissões técnicas que custam o equivalente a uma diretoria de multinacional. Resultado que é bom, poucos dão.

Os calotes são frequentes. Alguns clubes se sustentam na base do mecenato, como o Fluminense com a Unimed. Outros sobrevivem antecipando receitas de patrocinadores e parceiros e incrementando as dívidas.

Os jogadores, acostumados ao patamar salarial surreal e inviável agora não aceitam propostas de redução. Afinal, precisam saciar a sede de empresários e investidores, sedentos de lucros, e das famílias que aumentam da noite para o dia, alimentadas por primos que surgem do nada e um rosário de namoradas e ex.

O quadro que se desenha, salvo um ou outro clube com números mais próximos do saudável, porém modestos, é de um futuro para lá de preocupante.

Jovens atletas sem qualquer resultado esportivos estrelam propagandas como se já fossem grandes craques. Falam de si próprios na terceira pessoa e exigem compensação financeira para algo que só conseguem prometer. Têm staff de estrela de cinema e bola de figurantes. Mas a marra, o cabelinho produzido, as fotos no Instagram e as bobagens postadas no Twitter estão lá.

Os dirigentes amadores que sustentaram durante décadas o profissionalismo da ala bandida dos torcedores enfrentam agora o dilema da rejeição pelo mercado.

O cancelamento do contrato da Nissan com o Vasco é emblemático. Motivado pela violência da torcida que o próprio Vasco insiste em ajudar financeira e juridicamente. Quem arca com o prejuízo? A instituição e o torcedor amador e verdadeiro. Quem terá coragem de, um dia, cobrar na Justiça ressarcimento?

Para completar, temos o quadro da chamada Justiça Desportiva, que no Brasil tem importância que, salvo grave engano desse modesto escriba, não encontra paralelo em qualquer outra nação boleira. Não tenho informação de que na Espanha, na Itália, na Alemanha, na Argentina procuradores e auditores tenham seus nomes conhecidos pelos torcedores e apareçam tanto na mídia como no Brasil.

Muitos campeonatos foram decididos na canetada sob o argumento da legalidade. Mas a interpretação da chamada letra fria da lei não responde ao anseio do verdadeiro dono do espetáculo, o povo, o torcedor, aquele que não recebe para fazer o futebol, mas que tira do bolso para nele buscar entretenimento, seja ao vivo no estádio ou pagando para ver na TV.

O amadorismo profissional do futebol brasileiro apresenta uma conta que agora ainda parece fácil de ser paga, mas que daqui a dez, vinte anos pode ser prenúncio de quebradeira.

Há tempos que observamos a nossa criançada correndo pelas ruas e quadras de grama sintética (a versão moderna e adaptada à insegurança vigentes dos campos de terra e de várzea) vestindo camisas do Barcelona, do Real Madrid, do Chelsea, do Bayern de Munique. Muitos já têm idade para ter medo de ir à escola com as camisas dos seus times brasileiros, o que pode ocasionar uma surra de um bando de covardes simpatizantes de algum rival. Outros são desencorajados por pais zelosos. E há aqueles que simplesmente não torcem para nenhum time brasileiro, são do Barça, do Real, do Arsenal. Não são poucos.

O nível técnico do último campeonato brasileiro foi sofrível, abaixo da crítica. O último ídolo que reverberava nacionalmente hoje brilha na Europa.

Quando um tribunal cujos integrantes afirmam ser defensores da Lei aplica penas risíveis após a Barbárie de Joinville fica difícil acreditar que algum de seus integrantes realmente se importe com o futuro do futebol. Porque esses 12 ou oito jogos em breve estarão reduzidos pela metade, serão convertidos na mágica favorita dos doutos, que transforma violência em cestas básicas ou multas se impacto algum.

Dia após dia as pessoas que dirigem o futebol no Brasil estão atirando com mira telescópica. Nunca erram o alvo: o próprio pé. Quando acordarem pode ser tarde.

 

segunda-feira, dezembro 09, 2013

UM PAÍS DE BÁRBAROS

A tragédia de Joinville, as cenas de barbárie, tudo isso só comprova a triste tese de que somos um País violento. Muito violento.

A violência faz parte da nossa cultura e se manifesta em diversas formas.

Há um culto à violência em boa parte da juventude, no desejo de ficar forte para se mostrar forte, brigar, espancar os mais fracos e marcar território, como típico selvagem. Exercitar a mente virou banalidade.

A cultura da violência está enraizada também na cultura do dinheiro fácil, da visibilidade, do ter para mostrar aos outros e, também, do mostrar aos outros mesmo sem ter.
 

O futebol é um reflexo da sociedade em todos os seus estratos. Há décadas que a violência está instalada confortavelmente nas praças esportivas.

A violência que transforma promotores públicos oportunistas em celebridades-relâmpago e, posteriormente, em legisladores.
 

Os marginais travestidos de torcedores foram legitimados por muitos clubes, são conselheiros, diretores. Até são defendidos com veemência por mandatários.
 

Mas não é apenas em estádios de futebol. As notícias estão aí. Brigas em colégio por causa de namorados e namoradas ou por causa da roupa do colega de classe.

Jovens espancando outros jovens até a morte em casas noturnas.
 

Talvez doa a alguns ler o que vou escrever agora, mas somos um PAÍS DE BÁRBAROS. Simples e direto assim.

Sem admitir isso não poderemos trabalhar para evoluir e preparar terreno para gerações melhores que possam suceder as muitas que já estão perdidas.

terça-feira, dezembro 03, 2013

O dia em que joguei com Pedro Rocha


Já faz tempo o bastante para que a memória não seja suficientemente precisa quanto a datas ou locais. Mas sou um jornalista à moda antiga, daqueles que ainda preferem a qualidade das histórias e o valor dos personagens à frieza dos números e das estatísticas.

O que me lembro bem é do fato que motivou esse texto, que ganha vida agora em forma de homenagem.

Se foi no final dos anos 80 ou no início dos anos 90 pouco importa. Também é um mero detalhe se aconteceu em Vinhedo ou Valinhos, foi por ali. E aconteceu, asseguro.

Meu pai, Luiz Noriega, era amigo do dono de uma fábrica de bolas chamada Lance.  Um dia ele me chamou para ir com ele a um churrasco (é nessa parte que não me lembro se foi em Valinhos ou Vinhedo. Está mais para Valinhos quando vasculho a memória). Seria a inauguração da iluminação de um campo de futebol na chácara do proprietário da fábrica.

- Leva uma chuteira, uma roupa porque acho que vai ter uma pelada - aconselhou.

Lá fomos nós. Papo animado, churrasco delicioso, cerveja e muitos craques do passado, a maioria da região de Campinas.

Quando foi anoitecendo chegou a hora do jogo, de testar os novos holofotes. O dono da casa me chamou e pediu que eu e um outro garoto (eu deveria ter uns 19 anos, no máximo), que se não me engano era filho ou sobrinho dele, fôssemos completar um dos times.

Pois lá fui eu. Timidamente nos apresentamos, eu e o outro cara, para completar um time em cuja escalação havia, entre outros, "apenas" esses nomes: Tuta (ex-ponta da Ponte, irmão do Zé Maria), Vanderlei Paiva, Dicá e "Dom" Pedro Rocha. Houve uma rápida reunião no meio-campo e uma voz carregada de sotaque charrúa se fez ouvir, ordenando o seguinte:

- Garotos, vocês "dos" lá na frente, não necessita voltar, tá bom?

Quem éramos nós para contrariar uma ordem do Verdugo, de um estilista, do jogador que o Rei Pelé classificou como um dos cinco melhores do mundo?

Para um fã de esportes e apaixonado por futebol como eu, ao ponto de ainda insistir com as animadas peladas com os amigos aos 46 anos e um monte de "dolores", como dizia Dom Pedro, era como visitar a Disneylândia da bola.

Sem contar Pedro Rocha, havia Dicá. Ouvir o som da batida na bola do camisa 10 da Ponte e vê-lo virar o jogo buscando a matada perfeita de Pedro Rocha vale mais do que muitas aulas e milhares de minutos de futebol pela TV ou ao vivo.

Em certo momento, Dicá virou uma bola daquelas que todos nós, simples mortais peladeiros, chamamos de "torta". É uma espécie de tradição entre os jogadores lançar esses desafios, provocar a técnica do amigo. Eu estava sozinho na área, jogo em campo de society, sem impedimento. Quando vi a bola viajando, jamais poderia imaginar que o Pedro Rocha pudesse alcançar, estava muito alta e vinha girando como um globo terrestre na aula de ciência. Pois ele tirou da cartola uma jogada de mestre. Deixou que a redonda passasse um pouco por cima de seus ombros, levou um pé à frente e com o outro, de chaleira, jogou a bola exatamente na direção em que eu estava. Meio atônito, fiquei assistindo a jogada e perdi o ponto da matada de bola.

- Garoto, presta atenção, pô! - veio a bronca!

Generosos, Pedro Rocha, Dicá e os outros craques daquela pelada brindaram a mim e ao outro jovem com muitos gols. Daqueles fáceis, de empurrar a bola para dentro, porque eles deixavam o texto pronto e editado, era só colocar o ponto final.

Hoje pela manhã ouvi no rádio que Pedro Rocha se foi. Uns dias depois de outro gênio, Nilton Santos. Não por coincidência, ambos foram amigos do meu pai. Eu tive o privilégio de conviver com essa gente desde muito cedo. Eram outros tempos de futebol e de jornalismo esportivo. Havia mais educação, mais convivência, respeito. Os jogadores eram grandes ídolos, quase intocáveis, mas não eram celebridades mimadas, narcisistas e milionárias.

Pedro Rocha foi um estilista. Um meia de técnica apurada, força e conhecimento do jogo dentro de campo. Alto, elegante, pernas longas, domínio de bola absurdo, finalização precisa. Jogou demais no Peñarol, no São Paulo, teve lampejos da velha técnica no Palmeiras.

Alguns amigos são-paulinos falam dele com reverência protocolar. Muitos torcedores de outros times nos quais ele não jogou o respeitam profundamente.

Eu guardarei para sempre na minha memória de peladeiro o dia em que pude ver de perto Pedro Rocha jogando, ainda mais ao lado de outro grande, Dicá. Porque quem jogava eram eles, eu só estava tendo raro acesso a um mundo superior, a uma espécie de Asgard futebolístico.

Que os deuses da bola recebam Pedro Rocha com todo o respeito e as homenagens que ficaram faltando em alguns momentos de sua vida.