Futebol é paixão,
não pode ser ódio
Vi trechos da linda festa que o São Paulo fez para Luís Fabiano e Rogério Ceni. Digna de aplauso. Bem organizada, esperta, inteligente. Fez o que deve fazer o clube, tratou bem seu torcedor, o exercício da paixão. Marketing bem feito não precisa ser inédito, só precisa ser bem feito, inteligente e organizado.
Essas festas são sempre saudáveis. Foi assim com Ronaldo no Corinthians, Ronaldinho Gaúcho no Flamengo, Kléber no Palmeiras, as homenagens ao Marques no Atlético, Robinho voltando à Vila. AS recepções triunfais em aeroportos que fazem torcedores do Grêmio, do Inter, do Cruzeiro, em todo o Nordeste. Enfim, em todos os times e camisas. É praxe na Europa, na apresentação de novos contratados e de elencos para a temporada. Deveria virar praxe aqui também.
O SporTV tem tradição em mostrar essas festas. Fez isso com o São Paulo e o Inter nos Mundiais de 2005 e 2006, nas apresentações de Ronaldo e Ronaldinho. E tenho certeza que seguirá fazendo para todos os times que fizerem grandes festas e grandes contratações, sempre.
Quem sabe agora não pinta uma disputa saudável para saber quem fará a festa mais bonita, a mais inovadora, a que reunirá o maior número de torcedores etc? Pode virar uma tradição.
Escrevo isso para lembrar e reforçar que o futebol deveria ser sempre assim: festa e paixão. Celebrar o amor pelo clube e pelos ídolos tinha que ser a regra vigente nesse esporte que o mundo adora.
Infelizmente, o ódio tem contaminado essa relação. Para alguns, que não são poucos, mas graças a Deus também não são maioria, o que importa é disseminar o desprezo e o ódio pelo inimigo. Que deveria ser apenas adversário. Mais vale a derrota do outro que a vitória do time de coração. A provocação faz parte do jogo, na base da brincadeira, da coisa saudável. Mas a provocação descabida, gratuita, desnecessária, provoca reações dessa turma do ódio que geralmente não terminam bem. Dão nessa violência que espanta muita gente boa dos estádios.
Sou de um tempo em que os jogadores faziam apostas criativas, provocavam na boa, com humor, e promoviam o espetáculo. O que sempre se fez muito melhor no Rio de Janeiro do que em qualquer outra parte do Brasil. Até porque o carioca tem o Maracanã, que é uma catedral ecumênica do futebol.
Sou paulista, caipira orgulhoso, e falo de cátedra: nós somos mais metidos a sérios, mais carrancudos em relação ao futebol, levamos muito na base da cobrança, do resultado. Carioca se diverte mais, eu acho. E está certo nisso. Gozação tem que ser uma coisa que quem faz também precisa aceitar receber e seguir a vida.
Hoje vejo nas ruas, nos estádios, nas redes sociais, que há um ódio, uma neura que são lamentáveis. A agressividade beira o irracional, o conspiratório. Mas repito, felizmente, ainda é uma minoria. A maioria segue o lado do bom senso, da paixão pelo futebol e pelo time.
Contarei três histórias que presenciei e que mostram a maneira com a qual eu mais concordo em relação ao que deve ser a visão do torcedor sobre o futebol.
Moa e a alegria de ver futebol
Moacir Elias Jorge é um grande amigo da minha querida Bariri. A gente o chama de Moa, diminuindo o apelido de forma inversamente proporcional ao tamanho da fera. Moa é, ou melhor, era, daqueles gordões simpáticos, alegres, amigo de todo mundo. E era bom de bola, vi várias vezes o Moa jogando e bem, futebol e basquete, lá no Umuarama Clube de Campo. Digo era porque me contaram que fez uma redução de estômago e está fininho.
Formou-se em medicina e veio fazer residência em São Paulo. Corintiano fanático, Moa era, acima de tudo, um apaixonado por futebol. No estádio, fazia amizade com todo mundo, dava risada, conversava, formava uma pequena comunidade em torno dele.
Certo dia, lá pelo final dos anos 80 ou começo dos 90, toca o telefone. Era o Moa. "Vamos no jogo hoje no Pacaembu?" Eu respondo: "Mas você é corintiano, não é jogo do seu time". Ele: "que importa, vamos lá ver o jogo". Era um Portuguesa x Guarani. A Lusa tinha um bom time, ainda levava bom público ao estádio. Lá fomos nós, nos divertimos a valer, no estádio mais agradável de se ver jogo em São Paulo.
Assim era com o Moa. Ele reunia a turma para ir a jogos do São Paulo, do Palmeiras, do Santos. A gente ia numa renca, com torcedores de todos os times, reunidos. O Moa certa vez, no Morumbi, num jogo do São Paulo que a galera foi assistir, disse, no setor das numeradas, que era corintiano, mas gostava de ver futebol de todos os times. Sabem o que aconteceu? Nada. Todo mundo riu, conversou, se divertiu.
Ele foi ao Palestra Itália ver jogos do Palmeiras e fez a mesma coisa. Não havia problema. Assistiu a clássicos paulistas no Tobogã do Pacaembu, com torcidas misturadas e voltou para casa sem problemas.
Faz tempo que não vejo o Moa, um bom amigo das antigas. Sou capaz de apostar que ele parou de ir aos estádios. Mas deve nutrir o desejo de voltar, mas para uma época como aquela em que ele fazia amigos aos montes pelas arquibancadas, independente da cor da camisa. A paixão comum era o futebol.
Ba-Vi democrático
Lá pelos idos de 96 ou 97, fui fazer um jogo da seleção brasileira na Bahia, pelo jornal A Gazeta Esportiva. Emendei com um jogo do Brasileiro, acho que do Corinthians, e acabei ficando, pautado pelo jornal para cobrir o Ba-Vi, o grande clássico da Bahia.
Fui à Fonte Nova com a missão de contar como era o clima do jogo, já que naqueles tempos a violência estava comendo solta nos clássicos em São Paulo, era uma coisa terrível.
Tomei um susto. Positivo. Vi torcedores do Bahiatimes, sem encrenca. Tudo ao som dos tambores no ritmo do Olodum. Andei pelo estádio, entrevistei torcedores e pude testemunhar uma maneira diferente de ver o futebol, se comparada ao que era minha rotina em São Paulo.
Tinha uma charanga tocando, muita gente em volta, dançando, curtindo adoidado.
Já soube por amigos da Bahia que há muito tempo a coisa não é mais assim. Tem violência, divisão de torcidas, brigas e tumultos.
Mas naquele dia senti uma inveja positiva do povo da Boa Terra. Poderia ser assim sempre? Deveria, mas suspeito que talvez não seja nunca mais.
Time apanha. Torcida canta.
Em 1998 fui ao Uruguai, pelo Lance!, para cobrir Nacional x Palmeiras, pela Copa Mercosul. Conheci o Centenário, Monumento do Futebol Mundial. O jogo foi uma lavada do Palmeiras, 5 a 0, sem piedade. À época disseram que era a maior derrota do futebol uruguaio no Centenário.
Mas o que me chamou a atenção foi o comportamento da torcida do Nacional. Os caras não paravam de cantar. Era bola na rede, gol atrás de gol, e eles cantando, uma coisa linda, contagiante. Deveria haver umas 15, 18 mil pessoas no estádio. Numa das curvas atrás de um dos gols estava concentrada a maior parte da torcida. E tome cantoria, com letras que falavam de paixão pelo time, não de ódio pelo Peñarol ou coisas assim.
Saí da tribuna de imprensa e fui até aqueles torcedores. A matéria estava ali, o jogo já tinha sido resolvido faz tempo.
Encostei no grupo que puxava os cânticos, uma torcida organizada, já pensando que estava fazendo bobagem, que era melhor não ter entrado ali. Identifiquei-me como jornalista brasileiro e disse que estava impressionado com aquela festa, mesmo com o time perdendo de goleada.
Aí veio a resposta desconcertante: "Hermano, eu torço pelo Nacional, eu amo o Nacional, não importa se ele ganha ou perde. Vai ganhar, vai perder, mas eu estarei sempre aqui, porque sou um apaixonado pelo time".
Pensei comigo: cara, é isso! Tão simples, tão fácil. Fui a um senhor mais velho, que cantava feito menino, e aprofundei o tema. O jogo já tinha terminado, eles estavam indo embora, e o velhinho lá, cantando a plenos pulmões.
"Brasileño, Maracanazo! Jajajaja", riu ele, depois estendendo a mão. "Vocês são os melhores, mas o Maracanazo é uruguaio. Ah, e o Garrincha foi o maior de todos!".
Aí perguntei a ele da festa, da torcida. Ele respondeu com uma articulação incrível, sem pestanejar. "Vivi as melhores épocas do Nacional e do futebol uruguaio. Sei que elas dificilmente voltarão, mas o que importa é o sentimento. O Nacional é isso, o futebol é isso, um sentimento".
No dia seguinte, antes de voltar ao Brasil, comprei o livro do Eduardo Gaeano, El Fútbol a Sol y Sombra. Livraço, diga-se, indicado pelo grande amigo Menom. Na primeira página, ele conta, em algumas linhas, que vinha voltando para casa e cruzou com um grupo de garotos, encharcados de lama, com uma bola, voltando de algum campinho. Eles cantavam e riam. O refrão era o seguinte: "Ganamos, perdimos, igual nos divertimos".
Futebol é isso. A paixão precisa vencer o ódio. E vai, tenho fé.