Se fosse só o calendário...
Vira e mexe vem à tona a discussão sobre o calendário do futebol brasileiro. Para muita gente existe uma solução mágica: adequar o calendário brasileiro ao europeu. E aí de você se pensa diferente, porque você cai nas malhas dos intolerantes, que defendem suas teses como vacas sagradas e satanizam quem ousa pensar diferente.
Eu não ligo para patotas e panelas. Gosto de ter minha opinião, meu jeito de pensar. A diferença é que não satanizo nem abomino quem pensa diferente. Apenas respeito e tento debater com argumentos, civilidade.
Não acho que soluções que podem ser boas para a Europa, ou para algumas ligas da Europa, também sejam boas para o Brasil. Há uma parcela de torcedores, analistas e dirigentes que vê na Liga Inglesa o sonho de consumo, acha que o futebol brasileiro deveria simplesmente tornar-se súdito de Sua Majestade para encontrar o Nirvana.
A solução de um problema na Inglaterra ou na França não precisa necessariamente ser a solução de um problema no Brasil. Apenas porque o futebol, o nosso, o bretão, não é um sucesso nos Estados Unidos da América, muitas vezes deixamos de lado as lições que aquele país tem para dar em termos de organização esportiva e calendário.
Pois lá sobrevivem, e muito bem, diga-se, ligas de vários esportes, sem competir uma com a outra, respeitando condições climáticas e gerando situações econômicas e de organização que parecem inimagináveis para nosso País. Hóquei, Beisebol, Basquete e Futebol Americano têm seus calendários, seus formatos, que são adequados para a realidade norte-americana, para a personalidade norte-americana.
O futebol europeu, em especial o das grandes ligas, corre junto com a vida dos respectivos países. Experimente propor a um espanhol que façam jogos de futebol no alto verão? O calendário do esporte mais popular entre os espanhóis segue o calendário escolar e parlamentar do País, o que parece lógico, racional.
A Alemanha interrompe sua Bundesliga entre 15 de dezembro e 19 de janeiro, período que engloba as festas de Natal e Ano Novo e os piores dias do inverno.
A Inglaterra faz jogos em 26 de dezembro e primeiro de janeiro e os ingleses estão acostumados a isso.
Há casos de jogos às segundas-feiras, jogos à meia-noite, tudo por questões de contrato, acertado, e não se faz metade da chiadeira que acontece por aqui.
O que acontece é que ao querer importar um modelo é preciso, antes, avaliar as condições a que esse modelo será submetido. O que parece simples para casos clássicos como, por exemplo, automóveis. Um carro sucesso de vendas na Inglaterra pode ser um fracasso retumbante no Brasil. Será difícil perceber que essa situação também pode se repetir no futebol?
Qual a maior distância que um time viaja no Campeonato Inglês, que é praticamente metropolitano se comparado ao Brasileirão? Se não estou enganado, não há uma partida na Liga Inglesa em que a equipe seja obrigada de maneira incondicional a viajar um dia antes. No Brasil, dependendo da equipe em questão, um time do Nordeste para jogar no Sul pode precisar viajar com dois, até três dias de antecedência.
Há, ainda, uma questão básica que muita gente parece esquecer. São hemisférios diferentes, realidades geográficas e econômicas diferentes. Imagine o Náutico, por exemplo, jogando no dia 26 de dezembro à noite em Recife, e tendo jogo no dia 1 de janeiro em Porto Alegre. Chegaria a tempo? Encontraria hotel?
Será que algum romano admitiria partidas de calcio em pleno verão? Ou os parisienses? Ou alguém acha que os profissionais do futebol desses países também não gostam de gozar o sagrado direito das férias quando elas se apresentam mais apetitosas no chamado Velho Mundo?
Não parece racional que o futebol, esporte mais popular do Brasil, siga a lógica do calendário do próprio País? Os jogadores de futebol que também são pais não teriam o direito de estar em férias no mesmo período em que seus filhos descansam da escola? Ou parece um contrasenso? Ou apenas porque um grupo de pensadores pôs na cabeça que porque na Europa é assim a gente deve copiar?
Alguém aí realmente acha bacana jogo de futebol no feriado universal de primeiro de janeiro? Ou na antevéspera de Natal?
O que se debate pouco é a racionalização do calendário, não a macaquização de auditório proposta por alguns.
Também sou contra a demonização dos estaduais. Que, curiosamente, não eram demonizados quando eram transmitidos por quem não transmite mais. Sou, sim, a favor, da racionalização e adequação dos estaduais à nova realidade. Existe um mercado de trabalho ali, uma realidade regional que deve ser respeitada e que muitas vezes ajuda a manter vivos clubes tradicionais. Em alguns casos são muito mais racionais e viáveis que monstrengos tipo Copa Sul-Minas, por exemplo, uma aberração inclusive geográfica.
Basta botar na cabeça dos dirigentes (o que admito ser complicado) que estaduais são torneios de início de temporada, que podem servir muito bem para oferecer um bom aquecimento rumo aos torneios nacionais e continentais e, ainda assim, cumprir seu papel de entreter o público e gerar receitas quando a roda recomeça a girar após as férias.
Mas é impossível torná-los rentáveis com 20 times, 16 times, apenas para garantir votos que perpetuem dirigentes no poder.
Os torneios de verão na Argentina cumprem bem esse papel, têm tradição, rivalidade e relativa importância. Poderiam ser utilizados como exemplo.
Com estaduais menores é possível fazer uma tabela também melhor dos Brasileiros A e B, poupar os times de convocações fora de hora da seleção brasileira e encaixar uma semaninha para amistosos ou torneios.
Vejo muita gente de valor argumentar sobre excursões dos times brasileiros ao exterior, pré-temporadas em países da Ásia e do Mundo Árabe. Sinceramente, se fosse assim tão fácil, já estaria sendo feito. A dura realidade é que nossos times não existem como atração para esses mercados e duvido que alguém pague quantias que justifiquem ou viabilizem esse tipo de projeto.
A ideia da Copa do Brasil durante toda a temporada e abrigando as equipes eliminadas da Libertadores é coerente com a ideia de não matar o negócio.
Reduzindo sem exterminar os estaduais haveria espaço maior entre as decisões e o início do Brasileirão, um tempo para respirar, para organizar um jogo de abertura da temporada nacional entre o campeão da série A e o campeão da B, por exemplo. Tempo de criar expectativa.
Na hora de justificar o argumento, pouca gente recorda que a Argentina fez sua versão de adequação parcial ao calendário europeu e o futebol do país vizinho nem por isso enriqueceu ou saiu fortalecido. Longe disso, foi estatizado, está caindo aos pedaços em termos de infra-estrutura e muitos de seus jogadores sonham com a Europa ou uma boquinha no Brasileirão.
Atribuir culpa ao calendário, que hoje é muito mais organizado do que era há 15 anos, é querer fugir da responsabilidade pela má administração do negócio. Nunca circulou tanto dinheiro no futebol brasileiro, e as dívidas dos clubes geralmente só fazem crescer.
É possível fazer um modelo brasileiro de futebol, bem pensado, bem administrado, sem neuroses com janelas de transferência (que foram praticamente esquecidas, não é?). Inclusive aproveitando o fato de a nossa janela ser diferente daquela que abrange as principais ligas européias e cobrando mais pela liberação de jogadores em janeiro.
Numa comparação propositalmente esdrúxula seria como acreditar que se falássemos francês ou inglês, em vez de português, talvez tivéssemos mais educação, cultura e civilidade. Essas coisas não nascem com o idioma, não se compram como pacote e se aplicam. Boas ideias se copiam. Mas não se joga vôlei de praia no Alasca, nem se consegue organizar o campeonato brasileiro de esqui na neve em território brasileiro.
Feijoada é feijoada, fish and chips é uma outra história.
3 comentários:
Grande Nori!
Fantástico!
Conseguiu colocar em palavras tudo o que eu sempre pensei e não conseguia expressar.
Também sou contra à mera adaptação do calendário brasileiro ao europeu.
Sou a favor sim, de uma melhor administração do NOSSO calendário!
Tem até um pouco da história de complexo de vira-latas, achando-se que copiando o modelo europeu, resolveriam-se todos os problemas. E a comparação como idioma não foi esdrúxula, é bem por aí sim...
Grande abraço e parabéns pelo blog.
Ton
waguaru@hotmail.com
Muito interessante seu post. Noriega, tenho uma sugestão que quero compartilhar com você.
O que você acha de um campeonato regional, onde as equipes que parcicipam dos campeonatos nacionais possam atuar com seus times B. Com isso, a equipe principal pode ter uma pré-temporada adequada, os jovens oriundos das categorias de base, que a principio, não seriam utilizados nas equipes principais, comporiam este time B, com os regionais tendo a mesma duração dos campeonatos nacionais, isto è de Março a Dezembro(início)com jogos sómente nos finais de semana.
Grande abraço
José A. Pavinato
pavinato.jpn@terra.com.br
Essa deveria ser a realidade do nosso futebol.Parabéns pelo artigo!
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