ATÉ QUANDO?
Nesta quarta-feira, um telefone tocou em Oruro, na Bolívia. Um coração de mãe atendeu batendo disparado, em alerta por aquele sexto sentido que só as mães possuem. Despedaçado, esse coração de mãe foi obrigado a inverter a ordem lógica da vida e enterrar um filho. Uma criança de 14 anos que morreu estupidamente enquanto assistia a um jogo de futebol.
Um coração de pai hoje se corrói, equivocadamente arrependido por ter ensinado o filho a amar esse esporte que o mundo ama, o futebol.
Pouco importa o que apontarão as investigações, se é que apontarão alguma coisa. Se for confirmada a hipótese de crime, doloso ou não, essa morte produzirá fantasmas que assombrarão muita gente. Há uma longa fila de candidatos ao remorso.
Do alto de sua arrogância movida a interesses econômicos, a Confederação Sul-Americana de Futebol faz vista grossa, há décadas, para a barbárie que cerca seu principal produto, a Copa Libertadores. Esse objeto do desejo é palco de violências e atentados à civilidade desde sempre.
Desde as acusações jamais investigadas de doping a rodo nos anos 60 e 70, da intimidação com ajuda de forças policiais e políticas, de jogadores que atuavam com alfinetes para furar a pelo do adversário à presença de cachorros intimidadores e outros elementos em vestiários de atletas e árbitros. Passando por tentativas e sucessos em invasões de campo de jogo, batalhas campais, garrafadas, pedradas e por aí vai. Inclusive nesse Brasil varonil, que adora posar de vítima quando se trata de Libertadores, mas também já protagonizou muita barbaridade em busca de uma vitória.
É motivo de chacota mundo afora uma imagem clássica da Libertadores. Acuado, um jogador tenta cobrar um escanteio sob a proteção de escudos de policiais, em virtude da chuva de pedras, pilhas e toda sorte de objetos. E nada acontece.
Agora existe a promessa de uma Comissão Disciplinar. Depois de muito tempo os cartões amarelos, que tinham como objetivo engordar o cofre da entidade, agora são suspensivos. Mas a cobrança aumentou. Em dólar, registre-se.
As perguntas se sucedem.
Como é possível que alguém entre em um estádio de futebol com um sinalizador, um rojão, um artefato explosivo de qualquer potência?
Quem fiscaliza e determina que tipo de revista é feita em torcedores? É a polícia de cada local, de cada país?
Que graça tem levar ao estádio um sinalizador que só produz cheiro ruim, fumaça e atrapalha a visão de todos, no estádio e em casa, pela TV?
Torcedor comum, o de verdade, leva sinalizador ao estádio ou leva apenas a vontade de torcer?
Para fazer uma festa bonita é preciso sinalizadores?
Que legislação existe para a compra e venda desse tipo de artefato, no Brasil e no mundo?
Não custa nada lembrar do que aconteceu em Santa Maria recentemente, outra estúpida tragédia.
Não se trata de saudosismo. Comecei a frequentar praças esportivas em uma época na qual havia bandeiras nos estádios, baterias de rojões festejavam as entradas dos times. A festa era, sim, muito bonita. Mas os rojões eram atirados para o alto, não em direção a outros torcedores. Os paus das bandeiras serviam para bolar coreografias de pano e vento, não para rachar a cabeça de outros torcedores.
O verdadeiro problema não está nos artefatos, nos objetos. Está na peça que os conduz, no chip. O problema é o ser humano que transforma esses objetos em arma, por intenção ou irresponsabilidade.
Omissa por vocação, a Conmebol está agora diante de um dilema. Não importa a nacionalidade de um eventual culpado pela trágica morte desse jovem de 14 anos em Oruro. Ou dos culpados, porque existem erros em cascata. O que importa é o fato: morreu um torcedor em um jogo da Copa Libertadores da América.
Não me venham com o papinho de fatalidade, que pode acontecer com qualquer um, acidente, não houve intenção. É negligência. Fatalidade é o sujeito escolher o dia 11 de setembro de 2001 para visitar o World Trade Center.
Se mais uma vez a entidade resolver se calar e empurrar a barbaridade para debaixo do tapete, preocupada apenas com suas taxas e multas por cartão amarelo, esqueçam o sonho de ver a Libertadores valorizada, modernizada e profissionalizada.
O Direito Desportivo caminha, pelo menos no Brasil, para uma associação do mau torcedor ao clube que ele supostamente apóia (ou seria atrapalha?). Perdas de mando de campo e multas pesadas já foram aplicadas.
Os clubes teimam em permitir que sua imagem, seu escudo e suas cores sejam associadas a uma parcela de torcedores que muitas vezes nem sequer gritam os nomes dos clubes, mas apenas os de suas facções nos estádios. E quase sempre as tragédias se originam nos locais em que eles violentamente se instalam nos estádios ou em suas sedes ditas sociais.
Repito: o problema não está no rojão, no sinalizador, na pilha e no radinho. O problema está na mente doentia de quem olha para um objeto desses e vê uma granada, uma bomba, uma arma.
Mesmo que as investigações venham a provar que foi um acidente, que o torcedor não era "profissional da violência" etc. a memória dessa criança de 14 anos que morreu apenas porque decidiu ver um jogo de futebol precisa ser respeitada. Como a de todos que morreram em virtude de tragédias em campos de futebol. As vítimas de Heysel, Sheffield, Guatemala, Bradford, Glasgow, Moscou, Cairo clamam por justiça.
Junta-se a elas uma jovem alma boliviana.
2 comentários:
Só pra ficar em UM acontecimento:na Liberadores de 1983 houve a "Batalha de La Plata" entre Estudiantes Gremio onde todo o repertórios de barbáries foi utilizado,inclusive de se agredir um jogador do Gremio no intervalo,a ponto de ele não poder participar da segunda etapa.
Abraço amigo!
ATÉ QUANDO TIVERMOS PRIVILÉGIOS NO FUTEBOL BRASILEIRO POR PARTE DA JUSTIÇA, DA IMPRENSA E DAS FEDERAÇÕES.
ATÉ QUANDO UNS FOREM MAIS IGUAIS DO QUE OS OUTROS.
ATÉ QUANDO A IMPRENSA PARAR DE PASSAR A MÃO NA CABEÇA DE CLUBES E DE TORCIDAS QUE LHE INTERESSA COMERCIALMENTE.
ATÉ QUANDO AS PUNIÇÕES FOREM APLICADAS A TODOS E NÃO APENAS AOS INIMIGOS DO REI.
ATÉ QUANDO TIVEREM A CORAGEM DE AGIR COMO FOI FEITO NA INGLATERRA E EM OUTROS PAÍSES DA EUROPA QUANDO O NOME DO CLUBE A SER PUNIDO NÃO FOR FATOR DETERMINANTE PARA ABAFAR O CASO.
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