quinta-feira, março 07, 2013



Venezuela



Vejo pipocar textos e opiniões, nessas onipresentes redes sociais e na mídia em geral, a respeito da Venezuela e de seu futuro após a morte de Hugo Chávez.

Permito-me compartilhar uma experiência de 26 dias na Venezuela, em 2007, para a cobertura da Copa América pelo SporTV. Não serviu para me transformar num especialista em Venezuela, o que jamais fui ou serei, mas apenas para dividir uma visão de quem passou algum tempo por lá.

A chegada foi um choque. Desembarcamos de madrugada na cidade de Barcelona, província de Anzoátegui. Na recepção, uma imagem assustadora, pelo menos para mim. Fardados com o uniforme da Guarda Nacional (uma mistura estranha de polícia civil com Exército) havia adolescentes, alguns com provavelmente 12, 13 anos, segurando fuzis mais pesados que eles próprios.

Essa Guarda Nacional é (agora era) chavista e onipresente. Desde o policiamento dos estádios, passando pelo trânsito em ruas e estradas, eles estavam em todas com seus uniformes verde-oliva.

Há também uma espécie de Guarda Civil, que em Anzoátegui vestia uniformes azuis muito semelhantes aos da Guarda Metropolitana paulista. Tem menos atribuições. Muitos deles sequer andam armados.

O povo venezuelano é de uma alegria e amabilidade contagiantes. São amáveis, falam com aquele sotaque caribenho carregado, e espalham sua expressão favorita pelo ar: chévere! Uma versão para o nosso legal!

Assim como todos os países latino-americanos, a Venezuela foi, durante séculos, uma propriedade quase exclusiva de uma elite financeira, intelectual e política. O que gerou enormes desigualdades sociais. Nada diferente do Brasil, da Argentina.

A diferença é que a Venezuela foi abençoada com rios de petróleo em seu subsolo, o que a transformaria, potencialmente, numa espécie de emirado árabe encravado no Norte da América do Sul. O que jamais se concretizou, seja nos regimes da direita conservadora ou no modelo bolivariano de Chávez.

Cabe explicar algo dessa expressão bolivariana para que não haja equívocos de interpretação e, pelo menos, quando se queira elogiar ou criticar, se faça com conhecimento do contexto histórico. Simon Bolívar, o Libertador maior da América do Sul, era um monarquista de carteirinha. Fã dos reis absolutistas. Seu maior sonho era viabilizar a Gran Colômbia, que seria uma enorme faixa de terra que iria do Panamá (quer era parte da Colômbia) até a Patagônia. Ele, é claro, seria o Rei dessa monarquia sul-americana de inspiração absolutista.

Seu problema foi ter esbarrado em outro monarquista convicto, José de San Martín. Estiveram juntos apenas uma vez, em Guaiaquil, em 1822, e, dizem os historiadores, saiu faísca. O que deixou um saldo de divisão política no que seria a Gran Colômbia. O que hoje são Equador, Venezuela e Colômbia ficou sob herança de Bolívar (tanto que as bandeiras dos três países têm as cores da bandeira da Gran Colômbia. A Bolívia e o Peru são uma espécie de marco divisório entre as áreas de influência, tendo ficado para San Martín, digamos assim, o legado de Argentina e Chile.

Ambos os libertadores sempre sonharam em trazer o Brasil para sua causa, mas sabiam ds dificuldades de cooptar o gigante vizinho, sob forte influência da Inglaterra.

Bolívar tinha mania de perseguição. Via inimigos em toda parte, até na própria sombra. O soberbo livro O General em Seu Labirinto, de Garcia Marquez, retrata isso em forma de romance. Há historiadores que, inclusive, suspeitam que o assasinato do Marechal Sucre, espécie de braço-direito de Bolívar, tenha sido tramando pelo próprio Libertador.

Essa pincelada histórica serve para mostrar que Chávez tinha um discurso coerente com o personagem que sonhava encarnar. O bolivariano não era vago, em seu caso. Venezuelano, Bolívar terminou a vida tendo contra ele a elite que o apoiou em seu próprio país, porque ele havia encampado o discurso da justiça social.

Não que Chávez seja desprovido de contradições. Tentou um golpe de estado, se deu mal, foi preso, e critivava abertamente os que eram contra ele pela via das urnas. Mesma via pela qual foi eleito, o que não pode ser desprezado.

Mas e a Venezuela que eu vi, qual foi?

Um país tremendamente desigual e tenso, como é o próprio Brasil. Mas a Venezuela é um estado petrolífero por excelência. A Venezuela é, na realidade, um departamento da Pdvsa, a Petrobrás deles. Quem não está no governo ou na Pdvsa tem grandes dificuldades para sobreviver.

Ficamos boa parte do tempo na cidade de Puerto La Cruz, decadente balenário no Caribe venezuelano. A divisão do país era escancarada nas ruas do local. O setor hoteleiro estava encravado num distrito em que o chavismo fora derrotado nas eleições. Estava largado, havia desabastecimento e muita violência. Os supermercados com prateleiras vazias, e os donos contando essa história.

A cerca de dez quilômetros dali havia uma ilha de prosperidade, uma pequena cópia de Miami. Centros de compras modernos, supermercados abarrotados com o que havia de bom e do melhor, marinas luxuosas, uma gente morena, bonita e feliz da vida. Era o reduto em que o chavismo havia garantido a eleição de Tarek, governador de Anzoátegui e chavista. Eles próprios, os moradores, nos contavam isso abertamente e sem remorso algum.

A violência está tão encravada no dia-a-dia dos venezuelanos como no Brasil. Banalizou-se. É um país até mais violento que o Brasil. Há guardas armados até os dentes protegendo açougues de bairro, por exemplo. Tiroteios e assassinatos por motivos banais são frequentes. A miséria, exemplificada nas favelas, está presente, como aqui no Brasil. Na mesma rua há prédios nababescos e barracos miseráveis. É um país machista ao extremo.

A questão da Venezuela está no fato de Chávez ter apostado que com o petróleo transformaria o país. Não conseguiu. Porque a Venezuela é petróleo e mais nada. Infra-estrutura precária, agricultura inexistente, ao ponto de importar alface do grande rival ianque do Norte. A impressão que fica é que o discurso anti-EUA de Chávez tem como objetivo agradar alguma base de apoio radical, em especial grupos de jovens universitários e estudantes chavistas. Além de acariciar o estado-amigo cubano. Porque a Venezuela tem muitos negócios com os EUA, nunca deixou de tê-los.

Nas ruas pecebia-se uma clara divisão. Os pequenos e grandes comerciantes reclamavam abertamente do bolivarianismo. Quem aparecesse com dólar no bolso conseguia conversões fantásticas, porque há em boa parte do país, em especial na classe média, um desejo quase de oposicionista cubano de emigrar para os EUA.

Viajamos uma vez 500 km do caribe venezuelano para a região do rio Orinoco, no caminho para o Brasil. Não vimos uma plantação, e isso não é figura de linguagem. Não há nada no país que não seja oleoduto.

Em Zulia, província onde fica Maracaibo, está o grosso do petróleo venezuelano. Quando estivemos lá, o estado era de oposição, mas a cidade era chavista, o que potencializava o discurso ideológico de ambas as partes. Maracaibo é a cidade mais rica do país, e faz questão de mostrar isso, gastando o dinheiro do estado de Zulia.

Nos hotéis, o turista é freqüentemente abordado por belas venezuelanas, que justificam a fama de terra de misses. Educadas, cultas, são professoras, engenheiras, advogadas, comerciantes. Após meia hora de conversa oferecem serviços sexuais para reforçar o orçamento da família e ajudar o pai desempregado, ou que teve o negócio falido. Uma prática infelizmente comum no dia-a-dia de pontos turísticos do país.

Havia uma evidente manifestação de apoio popular a Chávez nas regiões mais simples por que passávamos, com a implantação de programas de assistência social parecidos com as bolsas distribuídas pelo governo brasileiro.

O transporte público é péssimo. Existe a figura do táxi comunitário. Vai parando e pegando gente pelas ruas, lotando aqueles carrões americanos dos anos 70. Porque lá a gasolina é mais barata que a água, então as banheiras sobre rodas fazem sucesso.

Nos estádios em que houve jogos da Copa América, a propaganda chavista era ostensiva. Livros escritos pelo presidente eram distribuídos aos borbotões por jovens trajados de vermelho. A propaganda ao estilo cubano e soviético está espalhada pelo país. Enormes painéis com pinturas épicas  e discurso nacionalista militarizado. Estudantes de universidades públicas foram enviados para trabalhar como voluntários na Copa América.

Em muitos casos havia confrontos ideológicos, com alguns poucos bate-bocas entre chavistas e opositores.

Na final da competição, em Maracaibo, os organizadores sofreram com um general chavista. Havia uma reserva de 600 lugares para convidados e patrocinadores. O tal general confiscou todos e encaixou os convidados dele, na mão grande.

Chávez não apareceu. Diziam por lá que ele tinha vários sósias que apareciam em seu lugar em algumas cerimônias, porque recebia muitas ameaças de morte. Outra versão dizia que por estar em território de oposição, certamente seria vaiado pelo público, o que ele evitava a qualquer custo.


Um dia, em Puerto La Cruz, chegamos para trabalhar em nossa cabine no estádio e havia um cartaz surreal pregado na parede: essa cabine foi confiscada pelo povo da Venezuela. Lá estavam alguns figurões do governo querendo ver o jogo em meio aos nossos equipamentos. Com alguma dificuldade, conseguimos arrancá-los de lá para trabalhar, até porque os direitos de transmissão valem uma fortuna.

Foi difícil avaliar a mídia, porque os próprios companheiros jornalistas diziam que 99% dos jornais eram bancados por propaganda do governo e fechavam questão com o chavismo. Como se soube depois, quem não aceitava essa condição tinha problemas e em muitos casos fechava as portas.

A figura de Chávez era onipresente. As tvs e rádios oficiais transmitiam seus intermináveis discursos por cinco, seis horas. O noticiário girava em torno do dia-a-dia do presidente e dos aliados como Cuba e Irã, e muita coisa relativa ao Brasil, com grande ênfase na figura de Lula. Algo muito parecido com o que faz hoje na Argentina a Kirchner de plantão.

O olhar de visitante pintava um quadro de um país tenso, ao borde da explosão. A Venezuela que vi em 2007 era um país dividido, com uma herança pesada de injustiça social. Com um governo de discurso socialista e de justiça social, mas que gastava os tubos comprando armamento e ajudando países amigos, deixando de cumprir com obrigações básicas. O desabastecimento na venezuela chega próximo ao que ocorre em Cuba em determinadas regiões.

Na volta, embarcamos na base aérea de Maracaibo. A polícia venezuelana entrou no avião para retirar dois venezuelanos e um brasileiro que tentavam deixar o país de carona e ilegalmente.

Torço, sinceramente, para que a Venezuela encontre uma saída de paz e democracia para a quase certa crise que se instalará com a morte de Chávez. Seu povo realmente irmão, alegre e hospitaleiro merece isso.

É um desejo acima de qualquer ideologia. Não simpatizava com Chávez e seu discurso torto, recheado de incongruências. Mas respeitava o fato de ele ter sido eleito em pleitos nos quais não se verificou fraude. Sua figura militarizada e algo folclórica jamais inspirava temor, como muita gente pintava no Brasil. Mas seu comportamento, em especial em relação a entidades como as Farc e ao Irã, eram muito inconsequentes.

Enfim, que a paz vença na Venezuela. Chévere!

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