segunda-feira, setembro 03, 2007
DEVOLVAM O FUTEBOL
AOS LEGÍTIMOS DONOS
Já faz tempo que venho ensaiando essa reflexão. Desde muito cedo aprendi a gostar do futebol, esse jogo tão simples e tão enigmático, que une analfabetos e intelectuais pelas mesmas paixões. O futebol é o que é porque um brasileiro da Amazônia e um monge no Nepal entendem e amam o jogo da mesma forma. Deixe de lado especialistas em tática, explicações técnicas, noções de arbitragem. O que vale é bola na rede. Por isso é tão fácil que uma dona de casa na Argentina e um estilista italiano saibam, só de bater o olho, que um time está jogando bem e outro nem tanto. É disso que ainda sobrevive o futebol, dessa assimilação imediata.
Quando percebi como era pegajoso esse tal de futebol, lá por meados dos anos 70, havia uma relação muito diferente das pessoas com o jogo. Os jogadores estavam longe de ser as celebridades milionárias de hoje, mas, embora não fizessem esforço para isso, pareciam ídolos inatingíveis. Os uniformes eram mais simples, sem tantos detalhes, mas pareciam mantos sagrados, vestidos por super-heróis. Um jogo da Seleção Brasileira no Maracanã era um evento, rendia conversas na escola durante dias. Isso sem falar na segunda-feira, na discussão calorosa sobre a rodada entre a molecada, que dividia o recreio com o obrigatório bate-bola (que às vezes, em vez da bola, tinha tampinha, copinho de lancheira etc.). Os grandes times eram cercados por uma aura de história, glórias, e feitos heróicos. Todos sonhavam um dia jogar num time de ponta do Brasil, tentar a sorte e viver as aventuras dos nossos ídolos para quem sabe, um dia, chegar ao topo, vestir a camisa da Seleção Brasileira.
De lá para cá, muita coisa mudou. Hoje essa Seleção virou escala no caminho de negociações milionárias. O jogador é convocado uma vez, sequer joga, é vendido e depois some. Quem começa a trabalhar diretamente com isso, a viver o dia a dia do futebol, percebe que há uma enorme distância entre o que imagina um torcedor apaixonado pelo jogo (sem cair para a óbvia e batida discussão clubística) e o que é a realidade do futebol. Na verdade, acho que roubaram o futebol dos seus verdadeiros donos, os jogadores e os torcedores mais simples, não esses que se juntam em bandos para brigar e matar sob o pretexto de amar um clube. Hoje o futebol pertence a essa guerrilha urbana e aos mercadores de plantão. Se antes havia - e continua havendo - cartolas amadores e despreparados, hoje entra em campo um afiado time de empresários que tomou de assalto a paixão, assumiu o controle dos negócios e fez dos clubes um entreposto comercial para a venda de mercadoria valiosa: os jogadores e a ilusão dos torcedores.
Lá pelos anos 70 existia a certeza que para jogar num grande time o sujeito precisava ser bom de bola, além de muito esforçado. Antes disso, literalmente gramava por times pequenos ou médios e por ótimos times de aspirantes. Hoje tenho a enorme desconfiança de que um empresário bem relacionado resolve essa questão em dois tempos. Entre a infância e adolescência, por força do trabalho do meu querido pai, Luiz Noriega, vi tudo quanto é tipo de jogo de futebol (e de várias outras modalidades). Muitas vezes deixava a cabine de transmissão da TV Cultura para ver o jogo na arquibancada, sentir a emoção verdadeira. E presenciei situações hoje inimagináveis. Vi grandes clássicos entre os times de São Paulo com os torcedores misturados no Tobogã do Pacaembu. Os times do Nordeste atraíam grande número de torcedores ao mesmo Pacaembu quando jogavam em São Paulo, em jogos nos quais o "Próprio da Municipalidade" chegava a receber até 50 mil pessoas. E sem briga. A chegada ao Morumbi num clássico dos anos 70 era civilizada, exceção feita ao trânsito, já complicado. Lembro de uma rodada tripla de um Campeonato Paulista, que envolveu simplesmente Palmeiras, Corinthians, São Paulo, Santos, Portuguesa e América de Rio Preto. As torcidas se acomodaram sem transtornos e não houve notícia de confrontos.
Esta semana assisti, aterrorizado, a uma reportagem da TV Gazeta sobre a caminhada de torcedores de um ponto a outro da cidade de São Paulo para acompanhar um clássico. Pareciam cenas de um pelotão indo para a guerra. Palavras de confronto, cânticos de morte, promessas de briga. Tudo sendo vomitado da boca de jovens, quase adolescentes. E havia crianças entre eles. Pois essa turma se apoderou do futebol. Hoje o torcedor que é apenas isso, um torcedor, não vai ao estádio porque tem medo de ficar na linha de tiro. O jogador tem medo de sair na rua e topar com uma tropa do time adversário. Isso quando a tropa não vai até ele em seu ambiente de trabalho.
No dia a dia do futebol as coisas também andam complicadas. Árbitros sem preparo erram marcações óbvias, treinadores e jogadores pulam de clube para clube como se mudassem de hotel nas férias e um tribunal desastrado aplica penas que incentivam a impunidade, a violência em campo e praticamente proíbem quem é, de fato, dono do espetáculo de abrir a boca.
Mas em meio a tudo isso, é fácil perceber que a chama não se apaga, que o futebol ainda atrai crianças, mulheres, novos torcedores e segue arrebatador como esporte de massa. Mesmo judiado ele resiste bravamente. Resta saber quando vão devolver o futebol a quem de fato ele pertence. Ao torcedor legítimo, aos jogadores. Chega de time montado por influência de empresário e de arquibancada lotada de bandido.
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7 comentários:
Ola Nori, sempre gostei de seus comentarios no sportv, pra mim você e escobar sao os melhores do canal, e claro com milton leite narrando.
Nao sabia que voce escrevia tão bem, parabens! sensacional o texto, uma aula!
abraços
Caro Maurício , gostaria que você comentasse a respeito do claro favorecimento a times do eixo rio-são paulo pela parte do STJD , por exemplo o caso de dodô (absolvido) e marcão (suspenso) e também ´mano menezes (suspenso por chamar a arbitragem de vergonhosa) e joel santana e renato gaúcho (um mandou os jogadores darem porrada e o outro disse que o juiz estaria roubando , ambos absolvidos)
espero que comente com sinceridade
um abraço
Wagner, vc cita apenas times do Rio em seu argumento. O que eu acho é que o tribunal tem critérios absolutamente contestáveis e com os quais eu dificilmente concordo.
Abs
Errei ao escrever São Paulo , falava sobre o favorecimento de times do RJ mesmo...Obrigado pela resposta.
Abraço.
Excelente texto. Tenho a mesma opinião.
Fiquei feliz de ler o nome de seu pai no texto. Tenho 45 anos, adorava ouvir Luiz Noriega " Esporte é Cultura" , sua narração sóbria, imparcial. Adorava ver o programa Esporte Opinião, com ele, o Dudu, o José Carlos Cicarelli, um outro repórter que acho que chamava Gerson, além do Orlando Duarte.
Parabéns pelo trabalho, seu pai deve estar orgulhoso.
Prezado anônimo, obrigado pela mensagem. Milton e Alex são duas feras mesmo. Abs
Francisco, muito obrigado pela mensagem. Sou suspeito, mas aquela equipe da Cultura é inigualável. Quanta saudade!!!! E também sou suspeito, mas meu pai narrando é o estilo que eu acho ideal para uma transmissão de TV. Abs, amigo. E orgulhoso sou eu de ser filho do Luiz Noriega.
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